1. – Sapri –
Conheço bem aquelas cadeiras castanhas do ECMA (Ex Cinema Mele Aperto), entalhadas numa madeira que doravante, conforme ditam as leis da Europa, é ilegal porque pega fogo e sim, pode pegar fogo à imaginação quando se tem queda para o abismo e se quer descobrir a respiração atada nos cabos do ecrã. O meu Cinema Mele ficava noutra ponta do mesmo mar, noutra baia, chamava-se Cineteatro Ferrari e tinha as mesmas cadeiras, o mesmo frio em Janeiro. No inverno de ’97 andava eu a estudar o Livro do Desassossego e fui lá ver um cante do Wim Wenders chamado Lisbon Story. Na província tudo chega mais tarde e muitas vezes essa lentidão é salvífica.
Fotograma após fotograma, Philip Winter (para quem não acredita em coincidências era este o nome do protagonista) andava a captar o som de Lisboa prestando homenagem ao sonho do Cinema. Entretanto, procurava um amigo misterioso pelas ruas duma cidade azul quimérica. Numa parede qualquer dum beco então desconhecido liam-se os versos de Álvaro de Campos: Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte. Fotograma após fotograma, digo, mas só até ao penúltimo. Porque o último nunca se chegou a ver: a pizza, como em Itália se chamava à película nessa altura analógica, quebrou à berma do fim e nunca mais soubemos – nem eu, nem o resto do público sentado na sala – do instante luminoso que encerrava a fita. O bilhete foi-nos reembolsado, como é óbvio, mas é um pormenor que aqui não interessa.
No inverno seguinte mudei-me para Lisboa, à procura dessa imagem-som talvez determinante que se tinha escapado pelas frestas da impossibilidade técnica. E continuo aqui, a contar não-lugares e condomínios de luxo entretanto surgidos a ocupar versos e becos, continuo aqui, como quem não quer acreditar que essa imagem última exista mesmo para além da utopia duma história acabada.
2. – Lisboa –
Entretanto vieram as notícias dos naufrágios. E deixei de acreditar nas leis da Europa, definitivamente. Quando se começou a perder na batimetria subaquática esse instante luminoso que encerra a viagem, multiplicado por milhares de olhos, criou-se no fundo do mar uma tela branca imensa, um reservatório de visões que nunca chegarão ao destino. Assim reencontrei o Álvaro de Campos na rotunda do Marquês de Pombal, muitos anos depois de Philip Winter. Estava ali transcrito num lençol, a dar as boas-vindas aos refugiados de 2015, divididos por quotas, conforme ditam as leis. Números. «Toda a gente em todo o lado», dizia o lençol esticado nos braços generosos dos manifestantes.
«Desculpe, acha que este é o lado certo da praça?» – questionou-me um senhor com sotaque eslavo.
«Como assim?» – perguntei.
«É que do lado de lá da praça estão os que não querem os migrantes. Eu quero ficar do lado de quem quer».
«Pois, então deve ser este o lado certo, sim».
Quero ficar do lado de quem quer. Tão simples como isso. Porque parto e chego, todos os dias. O meu trabalho situa-se na distância que há entre duas frases, entre lado e parte, na diferença que inevitavelmente existe entre dois sinónimos. O meu trabalho consiste em transitar entre a palavra impressa num suporte qualquer e a que se pronuncia lá fora, no mundo, transformada pela frequência das cordas vocais. «Pela palavra o homem está ligado à linguagem das coisas», diz Walter Benjamin no ensaio Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem do Homem. E ainda: «Traduzir a linguagem das coisas para a linguagem do homem não consiste apenas em traduzir o que é mudo para o que é sonoro, mas em traduzir aquilo que não tem nome em nome». Dar terra e sopro a todas as coisas.
[Quando penso que este meu texto será traduzido por outrem sinto-me na parte privilegiada da praça, do lado de quem diz o que quer. O tradutor tem uma liberdade condicional, segue um caminho já traçado, navega em pensamento alheio. Eu aqui reaproprio-me das palavras e sabe tão bem, oh, se sabe! Escrever é reapropriar-se das palavras, haver sessão da tarde outra vez num cinema fechado. Cultiva o incêndio.]
3. – Lampedusa –
Um nome é terra e sopro. Com Walter Benjamin a ecoar-me nos ouvidos cheguei a Lampedusa em busca dessa rota onde naufragam os continentes da História. As imagens que acompanham este texto são os escombros da viagem. Desta e doutras.
No arquipélago das Pelágias aprendi por fim a Geografia. Aprendi-a num alpendre cinzento rodeado de guardas e figueiras da Índia (Opuntia ficus indica) onde se detêm os recém-chegados da travessia. As leis da Europa chamam-lhe de hot spot. Num silêncio engasgado de estrepes, sob o sol a pique da ilha tempesteada de radares, decorei a topografia do século fulgurante. Compreendi que a tarde é uma árvore que não dá sombra onde a terra foi sacrificada à produção intensiva de carvão. No desamparo assimilei ventos e somei sinusóides de ondas com nitidez renovada. Sei agora que se não houver pelo menos dois ou três dias de mistral o mar de xaroco não acalma. Sei que o eixo do mundo pode bem ser uma quilha deitada a secar num areal desarmado. E que as nuvens também se classificam por ponto de origem. In your shoes. Nos sapatos pendurados ao tecto dum pequeno museu da memória náufraga, pisei os trilhos de quem partiu e não chegou. Sondei desertos, capitais, tratados. In your shoes aprendi. Que não somos mar, nem somos a terra que nos engole emanando fronteiras. Somos à noite, as luzes quando desembarcamos num porto qualquer. Do lado de lá das palavras.
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte.
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Imagens:
1. Maria Trabulo, «A Story of Fiction», 2015. Still. Projecção vídeo, cor, sem som, 1'37''. Cortesia: Maria Trabulo
2. Paola D' Agostino, «Lampedusa, Agosto de 2015»
3. Paola D' Agostino, «Lampedusa, Agosto de 2015»