No pequeno clube de teatro de Algés, «1a Acto», trabalha-se intensamente na organização de um exercício teatral, que se apresenta com aspectos de importante inedetismo entre nós, e que dá ao simpático teatrinho o aspecto inusitado de um incipiente teatro-laboratório. O exercício intitula-se «Nós não estamos algures», frase extraída de uma passagem da «Invenção do Dia Claro», de Almada Negreiros.
De resto, é neste poema e noutros, de outros tantos poetas modernos, que se baseia o exercício, o que não se confundirá, nem com uma sessão de teatro tradicional, nem com um vulgar recital. Trata-se, como nos explicou Ernesto de Sousa, que se ocupa do trabalho de encenação, de aumentar a circulação poética, experimentando os mais diversos meios de comunicação. A poesia é assim comunicada em objectos, em envolvimento e nos mais diversos tratamentos sonoros, inclusive na explosão de acontecimentos musicais, onde a uma estrutura mais ou menos rigorosa, se opõe diversas intervenções improvisadas. Para esta árdua preparação musical, acorrem as boas vontades, e sobretudo a decidida intervenção do compositor Jorge Peixinho. A comunicação audiovisual, e em particular cinematográfica, onde se salienta o trabalho de Carlos Gentil-Homem, as soluções plásticas e luminosas, em grande parte orientadas por Fernando Calhau, a intervenção do público (sócios e convidados), acentuam o carácter experimental aberto desta manifestação.
Um anti-espectáculo
Os principais responsáveis combatem a noção tradicional de espectáculo, como forma ultrapassada e nociva, porque geradora de crescentes hábitos de passividade num público cada vez mais neutralizado pelos meios massivos de informação desta nossa sociedade de consumo: que no caso português, se complica com os restos de uma sociedade ainda predominantemente rural; e portanto desinteressada de uma cultura urbana de que se sente alheada. Neste sentido, as coordenadas de agora e aqui coincidem e reforçam as necessidades mais actuais da arte moderna. E assim também, este exercício, lança um desafio a muita coisa, e em particular aos autores: é um trabalho essencialmente aberto, onde o esforço coral sobreleva as contribuições individuais. Isto traduzir-se-á numa luta, não polémica, mas simplesmente operatória, contra os individualismos das autorias. Segundo nos dizem, essa luta começa já a traduzir-se em termos concretos.
Um Trabalho Coral
Num dos textos que se estão elaborando sobre o «exercício» lê-se: «Uma das noções mais em voga quando se trata de encarar uma problemática caracterizadora da arte moderna, é a de participação. Realizam-se cartazes que devem ser completados pelo utente objectos escultóricos a que o visitante das exposições dará uma forma variável, e os teatros misturam o actor ao espectador, incitando este a... participar no espectáculo. Por vezes, estas tentativas revestem-se de grande ingenuidade. Os limites desta participação são, com frequência, demasiado estreitos e evidentes, e nem sempre a obra ou função se eleva acima da categoria de mero brinquedo ou jogo fácil. O nosso exercício pretende assumir, como não podia deixar de ser, os termos de uma efectiva participação do espectador ao ‘espectáculo’. Iremos mesmo ao encontro de certas ‘ingenuidades’, se for preciso. Como de um exercício de que se trata, há ingenuidades que devem ser experimentadas para, porventura, virem a ser superadas no futuro. Nós sabemos muito pouco de um certo número de coisas enquanto meios operatórios para atingir determinados fins. Os fins, porém, devem ser nítidos e preciso, e rigorosos como intenção. Pretendemos um trabalho coral, pretendemos analisar laboratorialmente, em extensão, as vias de um convívio enriquecedor. Pretendemos destruir a solidão individual ― aquela exactamente, que o espectador de teatro reencontra depois de ter aplaudido os actores de qualquer espectáculo normal.
Por isso, o nosso exercício não acaba, ou se quiserem acaba todas as noites não em aplausos mas numa ceia, através da qual, e na vida em seguida, se pretende continuar, um convívio e uma comunicação sempre diversa».
Teatro e Cinema
Entre as formas a que se recorre no exercício «Nós não estamos algures», o cinema
tem um lugar de primeira importância, como outras formas afins de comunicação audiovisual, projecção sucessiva e simultânea de diapositivos, etc. Além disso, informam-nos, toda a primeira parte do exercício, foi concebida para ser filmada e integrada no filme «Almada, um Nome de Guerra» que Ernesto de Sousa está produzindo. Trata-se, pois, de mais uma extensão deste trabalho que pretende não ter uma extensão única e precisa.
Ernesto de Sousa, in «Vida Mundial», suplemento «Actualidade» no. 1588, 14 de Novembro de 1969