Marlene Monteiro Freitas dançando o lado selvagem da beleza
Katherine Sirois
O rosto e o corpo grotescos percorrem a história da arte e tomam mil e uma formas desde as gorgonas gregas, os frescos fantasiosos e ornamentais da Domus Aurea de Nero, em Roma e a influência que exerceram na arte do Renascimento, os grotescos de Leonardo, a proliferação insolente dos híbridos nas obras de Bosch, aos retratos perturbantes de Cindy Sherman, passando pelas extravagantes e disparatadas Cabeças de carácter de Messerschmidt e as velhas desdentadas dos Caprichos de Goya e das pinturas negras da Quinta do Surdo, com as suas caretas e os seus feios rostos. Enquanto categoria da estética moderna – bastante diferente da sátira e da caricatura que acentuam o trabalho do negativo para o condenar e o rectificar – , o grotesco está geralmente associado ao mundo transgressivo da noite e do que é estranho, em que pululam e se acotovelam travestis, loucos, híbridos, figuras automatizas e selvagens, sem sombra de uma crítica ou de uma acusação. «A estética grotesca não condena aquilo que representa, limita-se a constatar a fragilidade das fronteiras entre o humano e o animal, o homem movido pela paixão e o monstro, o belo e o feio, o bom e o mau»[1].
A fragilidade das fronteiras (se as há) entre conflitos interiores, tensões e tormentos, e aparência exterior, ou seja a representação das moções da mente e das «paixões» (sinónimas de emoção nos trabalhos de Descartes ou de pathosformeln nos de Warburg) – é uma das principais abordagens artísticas do rosto. No domínio das artes performativas, é hoje levado ao paroxismo pela bailarina e coreógrafa cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas.
Na sua performance a solo Guintche, criada em 2010, confronta os espectadores com uma personagem misteriosa e impossível de apreender, sozinha em cena mas múltipla, cujo o corpo está cindido em dinâmicas distintas. Ao ritmo das percussões, a bacia da figura enigmática e decadente, ao mesmo tempo hiper-contemporâneo, kitsch e arcaico, gira numa verdadeira mecânica, repetitiva, infalível e ininterrupta. O rosto, por seu turno, entrega-se a uma prodigiosa série de metamorfoses, uma multiplicação ao infinito de faces «barrocas», excessivas e desconcertantes. A densidade expressiva que teria nutrido a tradição da percepção fisiognómica – o talento, escreveu Lavater, «de [dar] a conhecer o interior do homem pelo seu exterior»[2] e ao qual hoje em dia se dá o nome de morfopsicologia.
As mímicas faciais da figura, numa tensão extrema e permanente, são levadas ao próprio limite do disforme e do suportável. Esta policromia formal, que se desdobra numa energética expressionista em bruto, refere-se ao mesmo tempo ao frenesi carnavalesco e a uma espécie de automatismo mecânico absurdo. Tudo isto contribui a confundir os limites, ultrapassando os domínios das aparências sociais e do conformismo aborrecido, perturbando a banalidade das convenções e as normas, atingindo assim um núcleo primitivo perigoso que suscita o fascínio no público.
O ritmo furioso do rolamento das percussões e a sucessão dos gestos, as metamorfoses do rosto e das expressões parecem evoluir para um estado de transe hipnótica em que os géneros, as espécies, as identidades se fundem e onde as «paixões», – o orgulho, a divagação, o susto, a piedade, o desespero, o desejo, a venalidade, o sofrimento – traçam um caminho para superfície exterior do visível. Como uma luva de carne às avessas, vêm chocar-se no limite dos olhos cegos pintados nas pálpebras da bailarina. Pelo excesso, a descarga energética e a hubris, afectos e paixões acabariam assim por perder toda a consistência e por se pacificar.
Guintche retrata uma presença híbrida e ambígua, simultaneamente próxima e distante, uma alteridade potente, rapace, voraz e vazia, ao mesmo tempo homem e mulher, vadia e feiticeira, predador e presa, trickster e fantoche, animal e autómato. Os gestos deste corpo máquina, dançando a sua anatomia até à liberdade[3], rutilando e transbordando de vitalidade, animada por convulsões, encena a exuberância dos contrastes e a lei das transições que produz as inevitáveis passagens de uma imagem para outra imagem, de uma ideia para outra ideia, de um objecto para outro objecto, de uma figura para outra figura, de um outro para um outro outro. Os objectos, tal como as imagens, as ideias, as figuras e os outros são ou não deliberadamente assimilados, digeridos, integrados na matéria do corpo, transformados, destilados e descarregados numa espécie de nova organização do mundo, idiosincrática e marginal. Este dinamismo de perpétua devir na sua relação com o mundo e com a presença dos outros tem lugar porque a incorporação mimética, tal como a percepção, está aberta a virtualidades e potencialidades de actualização.
Mas que grito atroador silencioso é este, exprimido por uma boca escancarada que engole e vomita falsos lábios polpudos, mãos inquietantes, dedos tingidos de preto, línguas e matérias intrusivas? Será uma máscara tragicómica, uma máscara de ilusões e de verdades que vela e que desvela, um ser sobrenatural e ficcional, despojado de toda a glória, caçando alguma entidade invisível com olhos exorbitantes que não vêem nada ou a caricatura de um desgraçado iníquo dos baixios que troca olhares sugestivos que não dizem nada? Será o jogo teatral dos bastidores, um bodyacting imponente representando um além do corpo? A expressão transparente da opacidade do ser, a exposição da interioridade invisível e lotada, ou mais amplamente o sagrado «horror da vida produzindo e derrotando com facilidade seus monstros e milagres»?[4]
Guintche está assombrado pela figura dionisíaca da ménade, da bacante em transe que, no delírio sagrado e na loucura provocada pela comunhão com o deus, rasga as suas presas com as mãos nuas, num movimento de furor, à margem da cidade, das regras e dos interditos culturais que garantem ordem social e política. Esta figura foi igualmente desenvolvida no seu penúltimo espectáculo à data, Bacantes, Prelúdio para uma purga, estreado no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, no ano de 2017. A catártica é, de facto, um elemento chave no trabalho cénico da artista, no qual a imaginação desenfreada funciona por livre associação e cria passagens inesperadas entre as formas do pathos. Com a catharsis, esta prática de associação livre permite que se estabeleçam ligações entre a investigação estética, afectiva e figural de Marlene Monteiro Freitas e as abordagens surrealista, dada ou psico-patológicas.
Na explosão teatral dos afectos e das emoções, profundamente enraizada nas primeiras práticas religiosas e médicas, purga-se, purifica-se, sacode-se, põe-se em movimento e em acção. Os rituais de transe e de metamorfose, as desordens coreografadas e a representação teatral das pulsões mais violentas, agem todos como elementos de uma purga colectiva tornada efectiva pelos mecanismos de identificação mimética. «Com Dionísio, é no próprio coração da vida, nesta terra, a alteridade é uma intrusão súbita daquilo que nos afasta da existência quotidiana, do decurso normal das coisas, de nós próprios: o disfarce, a embriaguez, o jogo, o teatro, por fim a transe e o delírio extático. Diónisos ensina ou obriga-nos a tornarmo-nos diferentes daqueles que habitualmente somos, a experimentar, desde esta vida, aqui em baixo, uma evasão para uma estranheza desconcertante»[5].
Guintche, tal como Bacantes, ao provocar e actualizar uma condensação exuberante e efémera do potencial existencial, emocional e energético humano e pelo padrão dinâmico que dá movimento a toda esta sobrecarga, exulta numa variação de incarnações, de sensações, de emoções que é tão exigente e perturbador quanto deleitável e libertadora.
Footnotes
^ I. Barrena, L. Vazquez, «La beauté hideuse des corps ou la dégénérescence du ‘corps naturel’ au tournant des Lumières», Queste n°7, Saragosse, 1994, citado por Lydia Vazquez, in Dictionnaire Européen des Lumières, Paris, PUF, 1997, p. 608.
^ Michel Delon, «Physiognomonie», op. cit., p. 990.
^ Antonin Artaud, sobre o conceito de «BwO», the «Body without organs/Corpo sem orgãos», do programa de rádio To Have Done with the Judgment of God, 1947.
^ Roger Caillois, «L’enfer de la nature», in Vocabulaire d’esthétique, Paris, Gallimard, 1946.
^ Jean-Pierre Vernant, Mortals and Immortals: Collected Essays. New Jersey: Princeton University Press, Princeton, 1992, «Divinity», chap. 11, p. 196.