Mito solar pelo qual viver. Fukuko Ando e Amaterasu
Katherine Sirois
天照 – Amaterasu: a performance
O nome desta deusa solar[1], uma das figuras centrais do Xintoísmo antigo e moderno, dá o tom e a cor à performance artística concebida e encenada pela estilista japonesa Fukuko Ando. Este espectáculo exclusivo teve lugar em Lisboa nos dias 19 e 20 de Junho de 2015. Interpretada pela bailarina francesa Solène de Cock e musicada pelo compositor mexicano Jorge Govea, a performance funde géneros, media, espaços e tempos. No cruzamento das tradições ancestrais mais longínquas e de uma criatividade experimental contemporânea, Fukuko Ando reúne de uma forma pouco convencional, alta costura e dança, butô, teatro e transe, misticismo iniciático e música do mundo.
Intencionalmente programada para o solstício de Verão, para o momento do ano em que a iluminação solar mais dura, a performance sincrética tinha por intuito, tal um antiga festa ritualística (matsuri), celebrar Amaterasu, a deusa Sol. A performance completava a exposição temporária de peças escolhidas da estilista nas salas do Museu das Artes decorativas da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva (de 03 de Junho a 03 de Agosto de 2015). Nas salas do antigo museu de arte decorativa e no palco da sala central, os visitantes podiam admirar as criações com títulos evocadores, Union (organza de seda branca, 2014), The new alchemy, uma criação de 2008 (musselina de seda branca, vermelha, violeta, cetim de seda branca, variações de renda e enfeites, fio de ouro e prata, cristal Swarovski), Water (musselina em seda azul, 2005), The sound galaxy (cristal, fios de ouro metalizado) e Wing of Light, duas criações de 2007 (seda vermelha e azul).
A cerimónia começou no Largo das Portas do Sol, ao ritmo dos sinos de igreja, tão familiar em Portugal e em França, onde Fukuko Ando se instalou durante quase três décadas. Inteiramente envolvido numa crisálida negra de pura seda, uma figura sobe solenemente a grande escadaria que leva ao Salão Nobre. O ritmo é lento. O silêncio irrompe através do soar dos sinos. Como num cortejo fúnebre, os espectadores seguem passo a passo o caminho do personagem. Uma respiração lenta, profunda, difícil, faz-se ouvir. A figura parece originária do país dos mortos (yomi). Curvados, tensos, fechados, opacos e sinistros, os gestos, as expressões, juntamente com a atmosfera sonora contribuem para difundir um certo pathos. Os movimentos da bailarina são constrangidos e inconstantes. Depois, marcando uma transição súbita, os sons do harmónico do Hang electrónico produzidos por Jorge Govea ressoam, para encanto de todos. Sem perder a tensão e a intensidade, algo de luminoso se instala pouco a pouco. O ritmo mantém-se bastante lento, pontuado por sons hipnóticos. Depois de um abrandamento notável, o tempo da melodia do Hang acelera e assume uma cadência fresca e vivificante. De estremecimento em estremecimento, o personagem em estado de crise entra progressivamente em transe hipnótica, que adivinhamos ser purificadora, transformadora e libertadora. Graças aos movimentos cada vez mais marcados e livres da bailarina, a crisálida negra liberta-se e dá por fim lugar a um vestido de sol, cintilante e luminoso, assinada por F. A.. O simbolismo iniciático do rito de passagem é claro. Vamos progressivamente do reino sufocante dos mortos, do peso, do sofrimento e do fecho psíquico ao despertar, ao re-nascimento, a uma abertura interna e uma manifestação progressiva de uma alegria espacial, tal como a define Jean-Louis Chrétien no seu ensaio sobre a dilatação[2]. O acme da crise ao qual o paroxismo do estado de espírito obscuro leva, exprime-se através do estado de dissociação mística da transe. Sem este processo de dissociação psíquica, a doença e a depressão poderiam ser fatais. Mas em vez de morrer definitivamente, abre a uma experiência transformativa, ao desdobrar do si-próprio e à realização cósmica.
Esplendor e triunfo de Amaterasu! Assistimos assim ao espectáculo incorporado da purificação interior, da vivificação da vida e da transmutação do chumbo em ouro. A força vital entravada liberta-se progressivamente, põe-se em movimento, para animar com entusiasmo, para atingir um livre fluir. Reforça-se graças à energética sonora e vibratória da música que dá forma à manifestação material do invisível. A dança, impressionante, e a música, jubilatória, sobem conjuntamente em crescendo e atingem um climax em que o personagem se mantém suspenso na sua plena potência vital e na sua verdadeira natureza gloriosa.
As posturas e as expressões de Solène de Cock evocam, de certa forma a modernista e expressionista Hexentanz composta e interpretada pela pioneira Mary Wigman (1886-1973), entre 1914 e 1926. Tendo as batidas de uma percussão extática repetitiva e crua como pano de fundo independente, em vez do repertório musical convencional, Wigman interpretou uma dança de possessão ctónica ritualizada. Provocou assim uma brecha sem precedentes na noção estética do belo na dança baseada em regras e códigos externos, na sublimação, em arranjos harmónicos e em cenários atraentes. Esta produção teatral inédita até aquela data rompeu com a tradição clássica da coreografia ornamental e de grupos de virtuosos que seguem e interpretam a música segundo uma narrativa pré-existente. Uma tal implicação subjectiva e uma realização pessoal combinadas com um trabalho corporal criativo, autónomo e livre, tal como a improvisação e a performance em solo, foram centrais para os movimentos de vanguarda Expressionista e Dada que exerceram uma influência derradeira até hoje no campo da dança contemporânea.
Enquanto que Wigman deu vida à máscara facial hierrática que usa em Hexentanz, Solène de Cock petrifica a sua expressão facial em algo que lembra a presença e o papel arcaicos da máscara na tragédia grega antiga. O prosôpon, que designa ao mesmo tempo o rosto natural e artificial, foi concebido como um poder vindo do domínio das trevas, do invisível e do informe[3], um objecto estranho com aspecto vivo cuja aparência é susceptível de provocar efeitos de desconforto e ansiedade. Mas é acima de tudo a arte dramática japonesa do butô que subjaz à expressão física e facial de Solène de Cock. No seguimento do fundador do butô, Tatsumi Hijikata (1928-1986) que tinha estudado, entre outros estilos, a dança expressionista alemã, bem como o movimento surrealista francês, Solène de Cock explora a tensão entre ordem e caos, movimento e fixidez, vida e morte, paz e guerra (a catástrofe destruidora dos bombardeamentos de Nagasaki e Hiroshima, a petrificação do tempo, o lento regresso, depois do trauma, a uma vida[4] dolorosa e profundamente ferida, conjuntamente com os levantamentos sócio-políticos japoneses dos anos cinquenta e sessenta, são realidades subjacentes ao trabalho corporal e à expressão do butô).
À medida que mergulha num estado de crise, que tanto pode estar ligado a uma actualidade individual ou social e colectiva, também caminha pelos reinos do sonho e da imaginação, da dissonância e da distorção, combinando fealdade, deformação, pathos e absurdidade. Situada no cruzamento das artes da mímica, da dança, da performance e de uma espiritualidade vívida, encarna pouco a pouco um universo mental e emocional que é ao mesmo tempo minimalista, carregado e poético, um espaço em que a interioridade mais secreta e vibrante gera e dá forma a cada postura, movimento e expressão facial. Através de uma viagem iniciática e de uma transe transformativa, o personagem parece estar a viver as profundezas do seu coração e da sua mente, enquanto exala um sentido poderoso do Sagrado na sua forma de se relacionar ao corpo, ao mundo e ao cosmos. Aquilo em que Amaterasuthe performance se focaliza não é no peso das trevas como se uma noite eterna devesse seguir-se ao dia[5], como Wigman declarou no seu diário numa frase famosa, mas na ideia que a luz do dia sucede sempre à noite, mesmo à mais escura. Neste sentido, a performance tem um perspectiva optimista que também coincide com a vista expressa por Wigman no seu texto A linguagem da dança: «Senti mil vezes a exaltação pela ‘morte e renascimento’ da vida [...]. Viver a vida, afirmar a vida no acto de criação, elevá-la e glorificá-la? Isto é o que eu gostaria de escrever»[6], ou «aquilo que eu gostaria de dançar» acrescentaria provavelmente Solène de Cock. Mas, em última instância, é a mesma coisa, já que a dança de cada uma é uma linguagem performativa independente. Amaterasu não é uma entidade «fora de tempo» nem «fora de alcance», mas antes uma entidade permanentemente regenerada, actual, activa e benevolente.
Feminino e Japão dos tempos antigos
Sob os auspícios de um dos mais importantes e encantadores mitos da tradição Xintoísta[7], o da divindade Amaterasu – o grande Espírito Imperial Iluminando o Céu – a performance tendia a evocar, desta forma, um Japão mítico, um mundo em que os objectos inanimados (pedras e rochas), fenómenos naturais (montanhas, mar, ribeiras...) e seres vivos (homens e animais) eram investidos de forças vitais, sobrenaturais e sensoriais chamadas tama e kami (Rotermund, 1970: 970-972). Numerosas, benéficas e sãs, estas forças vitais eram sinónimos de uma vida longa, feliz e luminosa. Malévolas, impuras e doentes, ditavam inversamente uma vida medíocre, pobre e deficiente, tingida de infelicidade e morte. Os soberanos prestavam-se regularmente a rituais purificadores (chinkon-sai) de modo a aumentar e a reforçar a quantidade dos bons tama e de afugentar os maus chamados tamashizume et tamafuri. As artes da dança, da oralidade (kotodama), da música e do canto eram outras tantas preces encantatórias (norito) e potentes instrumentos de magia activa e transformadora. As mulheres desempenhavam um papel essencial, não estando ainda a sociedade japonesa submetida ao rigorismo e à austeridade do patriarcado triunfante. Xamanes, ascetas, curandeiras (miko), sacerdotisas sagradas, profetas, deusas... eram reconhecidas e celebradas tanto como fontes de vida na terra como para a sociedade humana. Estes personagens sagrados fundavam linhagens imperiais, legitimavam o poder e guiavam os soberanos e as soberanas, do mesmo modo que orientavam os indivíduos e as colectividades nas suas acções e nas suas decisões. Estavam no centro das coisas e dos eventos tanto horizontal como verticalmente[8]. Claro que, ter um personagem feminino como poder supremo no céu e na terra não é familiar às nossas fés monoteístas modernas apesar do facto de parecer ser uma imagem sobrevivente e uma personificação de um antigo matriarcado político, religioso e espiritual.
«O motivo do sol como deusa, e não como deus, é uma sobrevivência rara e preciosa do contexto mitológico arcaico, aparentemente difundido em larga escala a determinada altura. A grande divindade materna da Arábia do sul é o sol feminino Ilat. A palavra em alemão para sol (die Sonne) é feminina. Através da Sibéria, tal como na América do Norte, sobrevivem histórias esparsas de um sol feminino. […] Permanecem traços em vários países; mas só no Japão é que encontramos ainda activa na civilização a mitologia outrora grande; já que o Mikado é um descendente directo do neto de Amaterasu, esta, como antepassado da casa real, é honrada como uma das divindades supremas da tradição nacional do Xinto. Nas suas aventuras, pode detectar-se um sentimento diferente do das mitologias mais bem conhecidas do deus solar: uma certa ternura para com o dom da luz, uma gratidão gentil para com as coisas tornadas visíveis […]»[9].
Amaterasu: a narrativa mítica
O mito de Amaterasu aparece pela primeira vez na literatura japonesa no exacto início do século VIII. A história é contada nas duas compilações mitológicas de maior importância da cultura japonesa, o Kojiki[10]e o Nihon Shoki[11]. Este trabalho foi encomendado pelos soberanos com vista à construção de uma narrativa mítico-histórica oficial com o intuito de estabelecer a sua autoridade tanto no plano nacional como em relação às potencias circundantes da China e da Coreia. Com estas narrativas, os soberanos tinham o intuito de se distinguir dos seus vizinhos, apesar da inegável e permanente influência cultural e religiosa que estes exerceram na cultura japonesa.
O Kojiki, iniciado sob o reino do Imperador Tenmu Tenno, quadragésimo imperador do Japão que reinou de 672 a 686, foi prosseguida por ordem da Imperatriz Genmei (661-721). Associando mitologia, história, literatura e religião, engloba os mitos cosmogónicos, as histórias fundadoras do mundo e da sociedade japoneses, todas relativas às divindades primordiais. Estende-se cronologicamente até ao início do século VII E.C. O Nihon Shoki foi redigido por numerosos autores, entre os quais Ô no Yasumaro (?-723) e o Príncipe Toneri Shinnô (676-735), o terceiro filho do Imperador Tenmu. O livro, igualmente rico em informações sobre as sociedades dos homens, dos heróis, dos espíritos e dos deuses, está mais focalizado sobre a história cronológica do Japão e tem por fito, mais do que o Kojiki, estabelecer as versões oficiais dos mitos e das lendas «que constituem a tradição correcta»[12].
A genealogia imperial descendendo directamente da deusa Amaterasu servia a procura de legitimidade dos soberanos no seu exercício do poder. A deusa-sol também transmitia as insígnias oficiais do poder aos imperadores: o sabre, o espelho e as jóias que constituíam o Tesouro Sagrado[13] no Japão. Os mitos e os ritos relatados nestas duas compilações clássicas mergulham as suas raízes no Japão pré-histórico e proto-histórico em que o Xintoísmo, religião autóctone essencialmente animista e xamanística, se manifestava na sua forma mais rudimentar. «De um ponto de vista espiritual, os homens do Jômon (período cultural que corresponde aproximadamente ao período Neolítico) pertencem ao grupo das práticas religiosas tradicionais, quer dizer, a um modelo de pensamento e de representações para as quais o «Sagrado» é omnipresente, latente e potencialmente imanente a todos os animais, plantas, humanos vivos, a todos os meios ambientes naturais e celestes. Esta essência sagrada pode manifestar-se a qualquer momento e em qualquer forma possível. O «Sagrado» é uma força de vida criadora nas suas manifestações, mas parece ser venerado por ser a própria Vida, elevada ao grau de «Mistério Central»[14].
As duas grandes compilações do século VIII unificaram milhares de narrativas oriundas da tradição oral, poemas, canções, crenças milenares e retratos dos espíritos (tama) e das divindades (kami), dando-lhes uma forma lógica e cronológica que era ao mesmo tempo artificial e influenciada pelos modelos chineses pré-existentes. É também nesta época que o culto do sol, anteriormente ligado à abundância, à fertilidade e aos ritos agrários autóctones, foi institucionalizado pelo Imperador Tenmu. A Família Imperial (corte de Yamoto) rapidamente monopolizou o mito. Em 1868, o Xintoísmo tornou-se religião de Estado oficial de modo a servir os fitos expansionistas e a ideologia nacionalista durante a restauração Meiji (1868-1912). Nesta perspectiva, tentou-se então «purificar» o xintoísmo oficial das suas componentes «estrangeiras», em particular dos elementos oriundos do Budismo[15].
O mito da tradição xintô relata que Amaterasu, deusa solar e sacerdotisa benevolente que reina sobre os reinos do Céu (takama ga hara) e da Terra no «país do meio da planície dos caniços», encolerizada e ferida pelos actos sacrílegos e comportamento destruidor do seu irmão Susanowo no Mikoto que rivalizou com a sua irmã para lhe usurpar direitos e poder, retirou-se numa «caverna celeste» (ama no iwa [ya] to), por vezes interpretada como equivalente do túmulo[16]. Uma noite eterna caiu sobre o mundo dos homens. Os espíritos e as divindades, coadjutores da deusa, reúnem-se com o intuito de conjurar o inquietante e funesto «eclipse» do Sol. Levaram a cabo um ritual encantatório, puseram conjuntamente à obra meios extremamente potentes, tais como talismãs mágicos, fórmulas encantatórias e preces operantes. Depois, a deusa ancestral das feiticeiras e dos xamanes (miko), Ame no Uzume no mikoto, executou uma dança extática e frenética frente à «celeste-morada-das-rochas» que operou sobre a deusa o efeito esperado. Esta, atraída pela cadência animada dos sons, dos movimentos e dos cantos, mas também pela audácia da sacerdotisa que se desnudou e que, por esse gesto, suscitou uma forte reacção de regozijo na assembleia dos kami[17], deslocou a grande pedra que bloqueava o antro e saiu do seu retiro. Ao sair para a sociedade celeste, Amaterasu achou-se obnubilada pelo brilho do seu puro esplendor luminoso, porque os kami tinham suspendido aos ramos de uma árvore de folhas persistentes numerosos espelhos, concebidos como outros tantos atributos solares. Ao mesmo tempo subjugada e divertida, Amaterasu, tomada pelo deus Ame-no-ta-jikara-wo-kami (o deus-da-Potente-Mão-Celeste) foi, desde logo, curada do seu sofrimento e da sua aflição.
Como acontece nos ritos de cura e de «apaziguamento da alma» (tama-shizume) que se praticavam para chamar aos seus corpos as almas moribundas e devolver a saúde aos doentes, a dança mágica executada pela xamane exerceu o seu poder de reanimação das forças vitais da deusa. Os ritos xamânicos e profiláticos praticados no Japão antigo tinham por efeito, por um lado, manter a vida e, por outro, afastar a doença e a morte. Eram também «um meio potente para aterrorizar os demónios»[18]. Ligado ao ciclo das estações e à vitalidade, o mito da dança sagrada do xamane para reanimar Amaterasu é também entendido como um protótipo dos ritos agrários de fertilidade ligados ao solstício de Inverno. O papel das danças encantatórias xamanísticas era central naqueles tempos em que as sociedades humanas estavam muitíssimo preocupadas em reaver os indispensáveis benefícios de um forte sol potenciador de vida[19]
A escultura e o vestido: quando a matéria se torna espírito ou quando o espírito se torna vestuário
Fukuko Ando é uma criadora atípica na cena da alta costura parisiense e internacional. As peças que ela própria costura, inteiramente à mão, são únicas e surpreendentes com o seu sentido de vivacidade e complexidade. Os tecidos e os materiais, preciosos e variados (seda, cetim, algodão, musselina, renda, organza, fio de ouro e de prata, cristal...), são bordados, tecidos, feitos em croché, cosidos, reagrupados, atados segundo um procedimento penetrante e espiritual, muito próximo de um certo misticismo filosófico e alquímico. Fukuko Ando entra, de facto, num estado de comunicação íntima com a matéria a que dá forma nos seus aspectos mais subtis, ínfimos e indefiníveis. Com uma consciência ao mesmo tempo vasta e penetrante, sonda o infinitamente pequeno e esmiúça o infinitamente grande. A sua sensibilidade caleidoscópica viaja através da fibra do tecido à medida que estabelece um diálogo ao nível celular, atómico e vibratório, onde tudo é puro ritmo e luz. Porque, a matéria, diz-nos ela, tem os seus próprios espírito e força vital, o seu tama. Porque é pura energia, vive e respira. Daí a sua natureza cósmica.
A aproximação de Fukuko Ando não consiste em desenhar primeiro, em dar forma aos materiais segundo intenções pré-determinadas, mas antes no prazer espontâneo de esculpir as fibras directamente no manequim, deixando o espírito de cada uma delas manifestar-se através do processo e através das suas criações. Assim sendo, o trabalho consiste num perfeito equilíbrio entre recepção e acção, implementação e orientação. A sua aproximação parece passar pelos estádios sucessivos e simultâneos do abandono de si, de ligação profunda e de constante transformação. Ela explora as dimensões invisíveis e energéticas nos seus jogos de sombra e de luzes cintilantes para lhes captar a essência e as manifestar visualmente em novas formas, cores, texturas que se vestem.
As peças expostas no manequim convidam-nos a uma contemplação em movimento que entra em ressonância com a impressão de metamorfose contínua que exala dos seus trabalhos. A fluidez da sua imaginação criadora manifesta-se nas volutas, nas curvas irregulares e na geometria orgânica, mas também na dinâmica dos raiados, das nervuras e das linhas oblíquas, nos relevos assimétricos, nos planos alongados ou truncados, na volumetria côncava e saliente, nos jogos de reflexos, nas transparências, opacidades e aberturas. Como não têm nem frente nem trás determinados, os vestidos e os bustos desenvolvem-se segundo uma certa prática da heterogeneidade, levando a uma diferenciação e a um reconhecimento constantemente renovados.
Este aspecto do seu trabalho pode ser uma transposição ou uma reminiscência da arte esotérica dos jardins zen tradicionais do Japão (nihon teien) que compõem outros tantos elementos paisagísticos (montanhas, lagos, vales, caminhos...) num espaço reduzido. Esta arte está relacionada com a técnica dita de «captura viva» (ikedori ou shakkei). Do mesmo modo que o jardim, o vestido fluido, compósito e tridimensional é duplamente habitado. Gera um espaço intermediário, abolindo as fronteiras entre o interior e o exterior segundo uma experiência estética vibratória e emocional que combina simultaneamente ímpetos de integração (interior) e de projecção (exterior). Quando se olha de mais perto, pode sentir-se a vibração poética das peças, que de seguida se fundem com o corpo em movimento.
Ressonância, energia e transmutação são as palavras-chave para dar conta do trabalho de Fukuko Ando que, desde já há algum tempo, deu forma à pedra filosofal com a qual furou o seu próprio ego, para fazer irradiar a luz e para o invisível se manifestar. Por meio dos seus poemas que se podem vestir e dançar, explora a magia secreta da matéria viva com a qual encanta de novo a alta costura, entrelaçando ser e aparecer.
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Tradução do inglês por Nuno Miguel Proença
Footnotes
^ «O termo «Amaterasu» é a forma honorífica de «amateru», que significa «brilhando no céu». Takeshi, Matsumae. (1977). «Origin and Growth of the Worship of Amaterasu». Conferência na Indiana University, Bloomington.
^ CHRÉTIEN, Jean-Louis. (2007). La joie spacieuse. Essai sur la dilatation. Paris: Les Éditions Minuit.
^ Frontisi-Ducroux, Françoise. (1995). Du masque au visage. Aspects de l’identité en Grèce ancienne. Paris: Flammarion, p. 60.
^ Cf. TOMATSU, Shomei. (1966). Nagasaki 11:02, Tokyo, Japan.
^ «O que é normalmente designado pelo termo shintô engloba o conjunto das crenças e práticas religiosas que reinam no Japão antes da introdução do budismo – adoptado oficialmente no século VI – e que de seguida, no início da época Heian (794-1192), foi combinada à nova religião que era o budismo; sob esta forma, sobreviveram à Idade Média e aos Tempos Modernos até à Era Meiji (1868-1912). […] O shintô «via dos kami», foi criado no século VI para distinguir as crenças antigas da nova religião que era o butsu-dô». Rotermund, Hartmut O. (1970). «Les croyances du Japon antique». Histoire des religions. Encyclopédie de la Pleiade. Paris, nrf: 958-991. Cf. CAMPBELL, Joseph. (1973 [1949]). The Hero with a Thousand Faces. Princeton University Press, p. 210.
^ MACE, François. (1981). «Au-delà. Les conceptions japonaises». In Dictionnaire des mythologies et des religions des sociétés traditionnelles et du monde antique. Paris: Flammarion, I, pp. 107-111; ROTERMUND, Harmut. (1981). «Esprit vital, âme. Au Japon». In Dictionnaire des mythologies et des religions des sociétés traditionnelles et du monde antique. Paris: Flammarion, I, pp. 376-379.
^ CAMPBELL. (1973). «Rescue from without», op.cit. pp. 211-213.
^ Traduzido pela primeira vez para inglês, em 1882, pelo escritor britânico Basil Hall Chamberlain, professor de japonês na Universidade Imperial de Tóquio (1850-1935). CHAMBERLAIN, Basil Hall. (1982). The Kojiki. Records of Ancient Matters. Tôkyô: Charles E. Tuttle Company.
^ Redigido em mandarim clássico, a compilação foi traduzida pela primeira vez para inglês pelo diplomata e filólogo William George Aston (1841-1911) em 1896. ASTON, William George. (1972). Nihongi, Chronicles of Japan from the earliest to A.D. 697. Vermont and Tôkyô: Charles E. Tuttle Company.
^ Emblemas do xintoísmo de Estado (culto da família imperial cujo poder emana do divino), o espelho, o sabre e as jóias, enquanto manifestação física visível da filiação dos soberanos relativamente a Amaterasu e símbolos do poder e da autoridade supremos sobre a terra, estão presentes no Japão em todos os templos religiosos.
^VALAT, Rémy. «Le mythe de la création japonais et l’archéologie : à la (re) découverte de la période Jômon (16 500-900 an bp)». Les mythes et les Religions. Online [http://www.mythes-religions.com/2012/11/09/le-mythe-de-la-creation-japonais-et-l%E2%80%99archeologie-a-la-redecouverte-de-la-periode-jomon-16-500-ans-bp-900-ans-bp/]. Os artefactos provenientes do período Jômon são essencialmente estatuetas femininas em argila (dogû) com atributos sexuais muito acentuados. Estas representações, que simbolizam as forças vitais, são testemunhos de práticas cultuais ligadas às potências geradoras e à fertilidade que eram veneradas não só pela sociedade humana, mas pelo conjunto dos seres vivos («o princípio de fertilidade na natureza»). São numerosos os objectos exumados provenientes da época Yayoi que atestam a existência de práticas chamanísticas, mágicas e divinatórias, tais como os sabres em pedra (sekken), os sininhos em bronze (dôtaku), os piques (hoko) e os ossos de vários animais (bokkotsu) (Macé, 1998 e Rotermund, 1970: 962-963).
^Cf. TAKESHI, Matsumae. (1977). «Origin and Growth of the Worship of Amaterasu». Conferência na Indiana University, Bloomington. NAKAMURA, Motomochi Kyoko. (1983). «The significance of Amaterasu in Japanese Religious History». The Book of the Goddess, past and present, edited by Carl Olsen. New York: The Crossroad Publishing Company.
^ Deus da trovoada ou do relâmpago, Susanowo, que parece querer dizer «homem violento» é também chamado Take-haya-susano, em que take significa «forte» e haya «rápido». Encarna a força física, brutal, de que a tempestade é só o correspondente cósmico. Irritável, fulgurante e excessivo Susanoo devasta os arrozais de Amaterasu, apaga os caminhos, enche os canais e comete toda uma série de malfeitorias e de ultrages para com a sua irmã. Certo dia, esfola um cavalo vivo lança-o do cimo de um telhado na «casa pura e sagrada onde se tece» e onde se contra Amaterasu com as suas fiadeiras tecindo vestidos divinos (kan mizo). Uma delas, «apavorada, pica o sexo com a lançadeira e morre». É este evento que leva Amaterasu a refugiar-se na caverna celeste e, consequentemente, a não dispensar as suas benfeitorias sobre a terra. Yoshida, Atsuhiko. (1962). «La mythologie japonaise. Essai d’interprétation structurale». Revue d’histoire des religions, 161, 1, pp. 25-44
^ Este episódio não deixa de lembrar o da gesta mítica de Demetra, deusa do Olimpo da Terra e das culturas de trigo na mitologia grega. Demetra, aflita com o rapto da sua filha Perséfone por Hades, abdicou das suas funções divinas e errou, sem beber nem comer, sob os traços de uma velha mulher. «O seu exílio tornava a terra estéril e a ordem do mundo encontrava-se transtornada» (Grimal, 1951: 120). Mas a disposição de espírito de Demetra mudou de súbito no seguimento da dança efectuada pela gorgona Baubô que levantou as suas saias e exibiu as suas partes intimas. O riso libertador provocou o fim da angústia e do luto de Demetra e esteva na origem da sua recuperação. Cf. VERNANT, Jean-Pierre. (1985). «Le masque de Gorgô». La mort dans les yeux. Figures de l’Autre en Grèce ancienne. Œuvres. Paris: Seuil Opus, t. II, pp. 1575-1596. Ver, também OLENDER, Maurice. (1985). «Aspects de Baubô». Revue de l’histoire des religions, t. 202, n° 1, pp. 3-55.
^ Haguenauer, M.-C.. (1930). «La danse rituelle dans la cérémonie du Chinkonsai». Journal asiatique: recueil de mémoires, d’extraits et de notices relatifs à l’histoire, à la philosophie, aux sciences, à la littérature et aux langues des peuples orientaux. Paris: Société asiatique, 216, p. 349.
^ «Batemos com os pés para soterrar as forças do mal e acordar as forças vitais que estão escondidas na terra. Desta forma, esta entrada em transe permite revivificar os espíritos sobrenaturais cuja força se esgota no decurso dos tempos. Da igual modo, o matsuri tem por função acrescer a potência da divindade graças à energia libertada pelo ritual e aumentar, consequentemente, a força de toda a comunidade». BERTIER, Laurence. (1981). «Fêtes et rites saisonniers. Matsuri et nenchû gyôji au Japon». Dictionnaire des mythologies et des religions des sociétés traditionnelles et du monde antique. Paris: Flammarion, I, p. 414.