Segundo as análises taxonómicas de Lineu, o ser humano define-se por ser o único animal que tem conhecimento de si mesmo. Esse conhecimento leva-o a ser também o animal cujo instinto de sobrevivência instaura a ilusão como resposta aos perigos do real. A ficção surge assim como necessidade primária e intrínseca à natureza humana. Um imaginário povoado por complexas estruturas artificiais é o que permite continuar quando a necessidade anuncia um fim, ou simplesmente quando a finitude se torna irrespirável. De que modo é que essa relação com um universo ficcional de possibilidades que nunca se actualizam pode constituir um ponto de vista na configuração da própria subjectividade? E como é que o próprio real se transfigura perante a possibilidade de ser replicado, ampliado e manipulado pela força humana da imaginação?
1.
O conceito de imaginação [Phantasie] em Kierkegaard é apresentado enquanto medium que configura um determinado posicionamento do sujeito na existência. Ao abordar a existência através da imaginação, o sujeito está a aceder a uma existência determinada a priori pela perspectiva adoptada. Deste modo, a imaginação não constitui uma capacidade mas uma das condições de possibilidade para a realização de todas as outras capacidades – sentir, querer e saber – determinando as mesmas como sentimento imaginário, vontade imaginária e saber imaginário. A imaginação adquire um carácter constitutivo da própria existência ao corresponder à tonalidade ou afinação com que o sujeito a configura, sempre e de cada vez que a imagina.
A imaginação corresponde à infinitude de possibilidades do mesmo modo que a realidade existencial do sujeito, enquanto medium, é regulada pela demarcação de limites, pela necessidade e pela contingência. Kierkegaard define-a enquanto medium para o processo de infinitização na medida em que, sempre que o sujeito acede à existência tendo a imaginação como ponto de acesso, as possibilidades são infinitas e o infinito constitui uma possibilidade. No entanto, a infinitude que marca o imaginário não corresponde a uma mera anulação de limites; dá-se um processo de eufemização que anula propriedades que constituem a vida do sujeito quando acedida através da perspectiva da realidade, como o risco e a necessidade.
A imaginação define-se como ponto de vista em que a existência perde a sua nitidez, apresentando-se turva e obscurecida, por oposição à focagem rigorosa e veemente que nos é admitida através do medium da realidade. No entanto, essa focagem rigorosa com que a realidade nos é apresentada pode-se converter numa violência que encandeia, o que por vezes redunda num acesso negado, numa cegueira por excesso de luz. É através da perda de acuidade que, na imaginação, o risco inerente à realidade é suprimido, permitindo que as possibilidades se tornem infinitas, na medida em que – enquanto permanecerem na imaginação – jamais constituirão uma actualidade, no sentido completo da sua realização para o sujeito. Deste modo, a possibilidade que vigora no plano imaginário só se realiza quando o sujeito a concretiza através da sua inclusão no plano real da existência, processo mediante o qual possibilidade passa a actualidade.
No pensamento kierkegaardiano, a subjectividade corresponde a uma síntese dialéctica na qual tudo o que é constitutivo para o sujeito se apresenta numa dicotomia de uma categoria e da categoria que lhe é contrária. A liberdade dá-se precisamente na relação consciente que o sujeito estabelece com as dicotomias que constituem a sua interioridade. No entanto, a vigência de uma das categorias em detrimento da que lhe é antagónica pode ser determinada previamente pelo medium através do qual o sujeito acede à sua existência, que dita a anulação de certas propriedades e a manifestação de outras. Na personalidade enquanto síntese, «o finito é o limite e o infinito é o constituinte que se estende»[1] e através do qual o sujeito opera uma ampliação de si mesmo. Assim, a intensidade da imaginação do sujeito corresponde à intensidade do próprio sujeito enquanto possibilidade.
Pense-se no binómio que opõe possibilidade e necessidade. Dentro do plano da imaginação, nada mais existe que a possibilidade, não apenas no sentido em que tudo é possível – as possibilidades são infinitas – mas também na medida em que nada vai além da mera possibilidade. No imaginário, nada pode passar a acto e constituir uma actualidade. E, se tudo é possível, a necessidade e a contingência são suprimidas a priori e excluídas do plano da imaginação. O sujeito poderá certamente imaginar uma necessidade, no entanto, na medida em que pode também, querendo, suprimi-la, esta perde o seu carácter de necessidade – uma necessidade imaginária é ainda e apenas uma possibilidade. Podemos com isto concluir que, se o binómio necessidade/possibilidade é constitutivo do sujeito, este nunca se poderá realizar – naquilo que o define – de modo completo, através do medium da imaginação.
Também quanto ao binómio finitude/infinitude, verifica-se a supressão de uma das categorias oponentes. Se a imaginação corresponde à infinitude, a finitude constituiria a negação da natureza da própria imaginação enquanto medium. Assim, o imaginário só permite a realização do infinito; a finitude permaneceria por reconhecer se o sujeito acedesse à existência unicamente através do imaginário.
O processo mediante o qual o sujeito se torna aquilo que realmente é – numa apropriação de si mesmo ou num tornar-se contemporâneo de si mesmo – só acontece através de uma síntese consciente e concreta daquilo que o constitui. Se o acesso à existência através do plano do imaginário implica uma supressão da finitude e da necessidade, o sujeito nunca poderá realizar o processo de se tornar aquilo que é através do ponto de vista imaginário. A síntese dos contrários está implicada numa dinâmica em que o sujeito não delega a sua existência a uma única perspectiva através da qual pode ter acesso à realidade.
O auto-conhecimento e o consequente processo de apropriação de si mesmo passam pela atribuição de diversas configurações à existência, através da adopção das diferentes perspectivas que vão conferindo, de cada vez, uma determinada tonalidade à realidade. O processo de constituição do sujeito depende do reconhecimento de todas essas tonalidades, de todas as gradações – possíveis e actuais – de modo a que possa, posteriormente, adoptar um posicionamento perante as mesmas. Se a infinitude e a possibilidade integram a síntese que constitui a subjectividade, a imaginação é o medium através do qual o sujeito tem acesso a essas categorias na existência. A imaginação reflecte as possibilidades do sujeito ad infinitum; a realidade efectiva algumas dessas possibilidades. No entanto, o processo de constituição da subjectividade aponta não só para aquilo que o sujeito pode, em potência, ser, como também para o que já é.
2.
É no exercício de tomada de conhecimento de si mesmo, como num olhar perscrutante perante um espelho, que o sujeito transforma aquele que se encontra do lado de cá da imagem reflectida. A relação é permutável e a duplicação serve um único ser que se projecta no futuro. O espelho é um elemento investido de uma fértil carga simbólica e cujas alusões metafóricas se vulgarizaram na cultura popular. Da paixão de Narciso pela imagem que as águas lhe devolvem, ao espelho da madrasta de Branca de Neve, que parece apenas reflectir as vontades ou convicções daquela que o contempla, ou à Alice de Lewis Carroll, que o terá atravessado até ao bizarro mundo para lá dele, o espelho é sempre duplicação e transfiguração. Transfigura na medida em que determina o devir de quem, pelo olhar, (se) desvela e (se) decifra.
«O desdém do século XIX pelo realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho. O desdém do século XIX pelo romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.» As palavras de Oscar Wilde, que prefaciam o seu romance de 1890, The Portrait of Dorian Gray, apontam para um constante reconhecimento do indivíduo perante si mesmo e para o modo como esse conhecimento constitui o ponto de partida para as suas acções e criações. A partir daí marca-se no mapa o lugar a habitar: o eixo que, não podendo cair num delírio de inversão do real, garantido pela imaginação, não pode contudo encarcerar o sujeito na realidade que o submete.
Se a imaginação não dá a ver o risco e a necessidade, por vezes a realidade, por si só, não permite vislumbrar a totalidade das possibilidades. Se o sujeito que vive absorto na sua imaginação pode perder a concretude de si mesmo, ao ponto de se tornar uma subjectividade abstracta – uma mancha sem contornos que se espraia pela realidade –, o sujeito que só reconhece a necessidade na existência não tem condições para continuar quando todas as possibilidades que ele (re)conhece falham, perdendo a capacidade para acreditar e para vislumbrar o que transcende a sua limitada actualidade. O sujeito que se submete à realidade sem que o medium da imaginação possa constituir um ponto de vista fica desarmado perante a necessidade; e essa «falta de possibilidade significa ou que tudo se tornou necessário, ou que tudo se tornou trivial»[2]. Ao sujeito do determinismo, ignorante do infinito como possibilidade, «a imaginação deve elevá-lo para lá do miasma da probabilidade, deve arrancá-lo a este e ensiná-lo a ter esperança e medo – ou medo e esperança – ao tornar possível aquilo que ultrapassa o quantum satis [quantidade suficiente] de qualquer experiência.»[3] A imaginação instaura um império de possibilidades: é a face do sujeito enquanto possibilidade de si mesmo. À fracção da existência norteada pela ficção devemos a redenção quando a existência enquanto única via ameaça consumir-nos.
«Um ser humano é uma síntese do infinito e do finito, do temporal e do eterno, da liberdade e da necessidade, em suma, é uma síntese. Uma síntese é uma relação entre dois.»[4] Essa síntese que a subjectividade constitui assenta num sucessivo encaixe da realidade que se efectiva, na qual a contingência é plano de fundo, e da imaginação como infinitização das possibilidades de existência para esse sujeito. É nessa contenda entre a realidade – contingente, limitada e irrefutável – e as ficções que a imaginação nos concede que a vida se joga. A própria subjectividade é estruturada pelas ilusões que a imaginação lhe vai tecendo. O indivíduo toma conhecimento de si mesmo e do mundo no exacto momento em que se replica, a si mesmo e também à realidade, com a criação de todos os mundos possíveis. A partir desse momento, é a própria realidade que se define pela capacidade da imaginação: assim como a contingência é própria da sua natureza, também o é a existência constante de uma ilusão que a vai conduzindo de um determinado modo.
Esta linha de pensamento justifica a afirmação de que a natureza humana é, em si mesma, um reflexo daquilo que a espécie humana, através da imaginação, considera e almeja para e sobre si própria. Por esse motivo, a imaginação toma parte na dinâmica evolutiva da natureza humana como qualquer outro factor puramente externo. Podemos por isso afirmar que o que distingue o ser humano é o facto de a matéria que lhe dá forma e conteúdo ter também origem no ilusório e pérfido submundo da imaginação. Cada época encerra os sonhos e os medos próprios dos sujeitos que a vivem. No entanto, esses mesmos sonhos e medos não serão já uma realidade, na medida em que são actualizados e materializados, na época posterior, incorporados pelo homem, na sua colectividade? À frase de Michelet «Cada época sonha a seguinte»[5], Walter Benjamin responde acrescentando que «Cada época, com efeito, não apenas sonha a seguinte mas, sonhando-a, encaminha-se para o seu despertar. Carrega em si a sua própria finalidade e (...) realiza-a com astúcia.»[6] A imaginação confere ao futuro uma forma e uma tonalidade, aponta a direcção, ilumina o caminho a percorrer. Nesse sentido, todo o real é precedido e delineado pelo irreal, tal como a imaginação encontra na realidade o seu ponto de ancoragem. As duas faces de Janus pertencem a Janus.
A racionalidade do ser humano parece desabrochar acompanhada pelo seu antídoto: a irracionalidade. A queda no irracional, no mítico e no ilusório é por vezes o comportamento que a própria razão prescreve ao sujeito. No sufoco do finito e do necessário que nos são impostos perante a verdade extrema, o «nosso mais belo dever é imaginar que há um labirinto e um fio. Nunca daremos com o fio; talvez o encontremos e o percamos num acto de fé, num ritmo, no sono, nas palavras que se chamam filosofia ou na mera e simples felicidade.»[7] Com ou sem o fio, importa apenas que vislumbrar a saída do labirinto seja sempre possível, e que os caminhos para a encontrar sejam infinitos.
Footnotes
^ KIERKEGAARD, Søren. (1983). Sickness Unto Death – A Christian psychological exposition for upbuilding and awakening, translated and edited by Howard V. Hong and Edna H. Hong. New Jersey, Princeton: Princeton University Press, p. 31.