Esta pequena selecção de trabalhos fotográficos de Mónica de Miranda está focada na relação entre o humano e o solo, não de uma maneira em que a terra pertenceria às personagens, mas de uma forma em que os personagens pertencem à terra.
O Viajante sobre um mar de névoa[1]de Caspar David Friedrich parece ressoar através delas (pelo menos do ponto de vista de uma historiadora da arte), talvez para nos guiar rumo à possibilidade de nos aproximarmos destas imagens a partir da noção estética de sublime como experiência afectiva e envolvimento emocional dado por uma forte visão de ausência de limites, de força e de mistério.
De facto, podem aparecer ao espectador como uma variação contemporânea do tema da viagem introspectiva desencadeada pelo retiro no exterior, pela solidão e o silêncio, pelo movimento de distância, pela elevação do ponto de vista e pela confrontação pessoal com a vastidão da envolvente. As figuras tanto parecem ter sido capturadas pela paisagem como ser absorvidas pela visão interior reflectida no mundo que contemplam ou com o qual se fundem, de olhos amplamente abertos, de olhos amplamente fechados, mantendo-se de pé ou deitadas, sendo vistas de frente ou de trás.
Mas contrariamente à figura romântica tradicional europeia do Viajante de Friedrich, as figuras de Mónica de Miranda já não são masculinas, brancas e ricas. Em vez disso, e trata-se aqui de uma tomada de posição, são mulheres, negras, e seguramente não tão ricas quanto os membros da juventude burguesa do século XIX. Para além disso, ao contrário da paisagem pintada por Friedrich, intocada, pura e inatingível, no que tem de impressionante e de solene, as paisagens actuais nas quais as personagens femininas aparecem ora se encontram explicitamente feridas, ora estão marcadas por um segredo qualquer, sempre devido à história humana, sendo alcançáveis e próximas, exprimindo uma certa cumplicidade com as figuras femininas.
O tema da fronteira é central no trabalho de Mónica de Miranda, evidenciando o paradoxo que existe entre, por um lado, a beleza manifesta e a abundância da Natureza e, por outro, os efeitos devastadores dos sistemas humanos baseados na guerra e na exploração sem limites. Tal como a própria Natureza, as árvores, os solos, as águas, os animais selvagens..., as mulheres e as comunidades indígenas de todo o tipo encontram-se entre as primeiras vítimas da predação e da avidez desenfreada de territórios, de riqueza e de poder. De facto, passaram dois séculos inteiros de políticas colonialistas, de lutas pela independência e pela liberdade, de guerras civis e de conflitos armados com o intuito de assegurar terras e matérias primas para a indústria desde o nosso viajante reflexivo acima de um mar de névoa.
Será que, através da névoa do tédio, se tratava de um apelo às viagens exploratórias de terras remotas e desconhecidas, que fazia do caminhante de Friedrich um capitão cavalheiresco erguendo-se na proa do seu navio? As mulheres das fotos de Mónica de Miranda também não aparecem explicitamente como conquistadoras, combativas ou desafiantes. Antes parecem meditativas, pacíficas e vulneráveis na sua forma de marcar o território que é o delas, hesitando ainda entre a rigidez, a formalidade e o à-vontade para exprimirem a auto-determinação. Enquanto mulheres, pertencem à terra e a terra, com a sua força e fragilidade torna-se o espaço territorial da expressão de si mesmas.
Se a noção de «sublime», tal como é entendida no contexto da química como na linguagem secreta da alquimia (para designar a fase de transformação de uma substância que passa «directamente de um estado sólido a um estado gasoso sem passar pelo líquido», induzindo a metáfora do pesado que é tornado luz e do sólido e limitado que é tornado vaporoso e expansivo[2]), também pode ser vista na pintura de Friedrich – pés assentes nas rochas, cabeça entre as nuvens – o movimento de transformação que está activo nas imagens de Mónica de Miranda pode ser sentido de forma inversa. De facto, a noção oposta à de sublime, a de «sublato», parece operatória nestes casos, já que as figuras não se libertam do peso telúrico para elevarem e expandirem o seu espírito caminhando por terras distantes. Pelo contrário, estão enraizadas no solo e a sua resposta emocional à visão é mais visceral.
No eixo espácio-temporal horizontal, o movimento imaginário a que aludo parece encontrar-se igualmente invertido. Será que as figuras femininas são representadas regressando à sua terra natal para explorarem a memória colectiva e para partilharem com os seus familiares uma parte do tumulto e do sofrimento de que fugiram? Se o caminhante romântico foi visto como uma metáfora do futuro desconhecido[3], o futuro destas mulheres parece estar profundamente enraizado no passado. Quietude não quer dizer ausência de memória e esquecimento. Pode exprimir aceitação e o desejo de seguir em frente a partir do sítio onde se erguem da própria terra tal como esta recorda, para lá do espaço politizado e delineado, a sua extraordinária capacidade de criação, de resiliência e de recobro. A partida gera uma nostalgia infinita, da mesma forma que o regresso provoca uma melancolia sem fim. Tal como as plantas, os humanos têm raízes invisíveis que crescem profundamente para o interior da terra ao som de música e de linguagens (perdidas) da infância[4]. O principal ponto comum entre o caminhante romântico e as figuras de Mónica de Miranda residiria nesta tensão peculiar entre a imobilidade e a clausura da melancolia e o dinamismo de energia vital que silenciosamente recorda, abre, exprime, põe em movimento e dá lugar a novas perspectivas.