Theory of Discomfort é um projecto multidisciplinar que reflecte sobre a natureza humana, o mundo não-humano e as possibilidades da sua inter-relação. Nesta edição, Theory of Discomfort apresenta um ensaio tríptico que problematiza a noção de conhecimento e de progresso, ao mesmo tempo que se debruça sobre o sofrimento dos seres e a magia da vida no desafio terreno da existência.
Theory of Discomfort
Becoming Human
«It was a fundamental error on the part of Herbert Spencer to interpret the annihilation of surplus offspring as a “survival of the fittest” in order to predicate progress in the development of living beings on that. It is hardly a matter of the survival of the fittest, but rather, of the survival of the normal in the interests of an unchanging further existence of the species.»
Jakob von Uexküll, A Foray into the Worlds of Animals and Humans, with A Theory of Meaning. 2010.
Quando o célebre biólogo alemão Jakob von Uexküll afirmou em 1934 que, no desenvolvimento dos seres, o progresso tem mais a ver com a sobrevivência do normal do que com a sobrevivência do mais apto, ele não só nos faz repensar a teoria evolucionista de Darwin, como também nos permite questionar que paralelo poderemos traçar entre a teoria evolucionista e o comportamento humano. Aparentemente, no que diz respeito à espécie humana, não são só os nossos genes mas também a natureza do nosso pensamento e acção que tende a privilegiar a norma em detrimento da incerteza de um futuro movido pela diferença e pela mudança. A magia descontrolada que frequentemente governa o progresso de novos rearranjos (híbridos e novas espécies) poderá ser demasiado perigosa para garantir um futuro, que, acima de tudo, deve permanecer seguro, familiar e certo.
Se, por exemplo, olharmos para a modernidade e a sua ideia normativa de progresso, podemos reconhecer no mundo pós-moderno a herança de alguns dos seus valores e observar que ainda nos alimentamos de alguns dos seus preconceitos, tradições e medos. Na política e no discurso actual, é possível ainda reconhecer o apelo da modernidade à razão e ao controle, apelo esse que também tende a submeter todas as formas de conhecimento à validação científica. Familiar aos modernos, seria também a perpetuação da normalização do sofrimento e da subjugação em nome de um progresso que pretende servir o bem-estar humano. Essa noção de progresso baseada no controlo, na hegemonia científica e na violência (a violência da exploração capitalista) poderá ser o véu que parece obscurecer o nosso sentido pós-moderno de bem-estar, dando a sensação de que, por melhor ou bem-sucedida que a nossa vida seja, algo de errado condiciona o nosso continuum, ou, por outras palavras, algo de errado nos está a impedir de um futuro (Marta Alvim, The Death of an Owl, 2012)1.
No entanto, em vez de maligna, esta sensação de (des)conforto que entorpece as nossas relações com o mundo, inquietando a nossa confiança num futuro, poderá ser vista como uma oportunidade para uma mudança de paradigma ou como uma alavanca que ajude a parar de «procurar no passado a energia do presente» (Bruno Latour, 2010, 485), pois nenhuma linguagem de progresso deveria ser a mesma da opressão e dominação para dois terços da população mundial e toda a constelação não-humana. Uma problematização não apenas da norma, mas (e principalmente) das nossas relações com o outro (particularmente o outro vulnerável) deveria necessariamente ocorrer para dar ao progresso uma oportunidade de renascer, permitindo que a paradoxal afirmação de Adorno «o progresso ocorre onde termina» (Theodor Adorno, 2003,130) possa finalmente ter lugar.
**
O problema do que significa ser humano e de que maneira poderiam outros seres ascender à categoria humana (em termos de direitos, sensibilidade, apreciação, etc.) interrelaciona questões de ética, economia e segurança (ou mesmo autoconfiança). Se outras criaturas se pudessem tornar humanas, como seria possível praticar formas de exploração que dependem do acto de diferenciar e objectificar? Como poderia alguém gostar de ver num jardim zoológico um gorila cujos 99% de ADN humano não o impediu de ter uma vida deslocada e confinada? Em vez de reconhecer uma falha, parece ser muitas vezes mais fácil continuar, por exemplo, a ver nos gorilas uma coisa, uma besta ou um monstro (como no filme King Kong) do que reconhecer o seu olhar ou comportamento humano (Marta Alvim, Instinctive Behaviour, 2016)2.
Um dia Jakob von Uexküll fez uma «pergunta simples»: «Será a carraça uma máquina ou um operador de máquina? Será ela um mero objeto ou um sujeito?» (2010, 45) A resposta em vez de simples é, no entanto, bastante complexa. A ideia que está por detrás da pergunta de Uexküll aponta para questões familiares ao animismo, pois engloba a crença de que tudo o que existe pode ter agência e que não há uma fronteira clara entre o mundo material e o mundo imaterial.
No animismo, algo que poderíamos chamar de consciência existe não apenas nos humanos, mas em todos os animais e plantas, bem como noutras entidades do mundo natural, como a água, o ar ou o fogo. Na tradição oriental, uma forma de consciência concebida como um fluido etéreo que permeia todo o universo, possui, em sânscrito, o nome de Akasha ou Akash. A crença num mundo animado por todos os tipos de entidades e forças é também o que está na raiz das críticas aos ambientalistas como sendo muito antropocêntricos por ousarem atribuir «valor, preço, agência e propósito, ao que não pode e não deve ter nenhum valor intrínseco» (Bruno Latour, 2010, 481). A ideia de dar agência ao que os racionalistas consideram coisas, dá um sabor New Age aos esforços de mudança de paradigma, atrasando muitas vezes o trabalho de quem tenta ir para além dos constrangimentos do materialismo.
Como evidenciado anteriormente, se assumirmos que toda a vida tem um valor intrínseco, não há divisão possível entre o homem e a natureza. Isto põe em causa o próprio direito de termos estabelecido por tantos séculos uma divisão tendenciosa que apenas privilegiou uma pequena parte da população. A ideia de que tudo o que existe importa, leva-nos assim a pensar que precisamos de uma nova democracia, uma democracia que se estenda a todas as coisas. Latour explorou essa possibilidade no seu Parliament of Things, um parlamento onde todos os fenómenos naturais e sociais, bem como os discursos sobre eles, não eram vistos como objetos separados a serem estudados por especialistas, mas como agentes valiosos que deveriam ter assento e voz nos organismos de poder. A tentativa de Latour de reconectar o mundo social e o natural, argumentando que a distinção modernista entre natureza e cultura nunca existiu, atua diretamente em questões complexas e oportunas como o racismo, os direitos dos animais, os direitos humanos e a justiça climática, permitindo que tais questões se tornem cada vez mais reais e tangíveis e, portanto, mais passíveis de serem abordadas.
Sem incidir sobre nenhum grupo em particular, o parlamento de Latour tenta proteger a vida da violência da razão humana. Mas apesar dos seus esforços de trazer mais justiça ao planeta, o Parliament of Things pode estar a incorrer no mesmo risco de usar a tão racional expressão coisas para designar tanto os vivos como os não-vivos (Latour defende tanto os direitos dos não-humanos, como os dos quase-objetos e dos híbridos). A meu ver, a perigosa eliminação da diferenciação entre os vivos e os não-vivos pode contribuir para perpetuar o sentimento de dúvida e de confusão em que já estamos imersos, pois não está no acto de indiferenciar, mas na capacidade de acolher uma diferença não antagónica que vive a possibilidade de alcançar um convívio positivo.
Para além disto, embora as coisas de Latour tentem servir tanto o pássaro como a montanha, elas falham em resolver o problema do sofrimento. Talvez uma investigação sobre o sofrimento devesse ser levada a cabo para encontrar os limites da vida e os limites da diferença, numa última tentativa de resgatar a substância vital do nosso frágil humanismo planetário.