O poder do sessenta e nove está na reversibilidade perfeita, sem resto, sem direito e avesso, vice e versa, um pouco como a fita de Möbius, sem interior nem exterior, cima e baixo, princípio e fim, sem ficar nada de fora.
É que tanto eu aqui como tu aí à minha frente lemos o mesmo, escrito na mesa.
Só com este número acontece esta leitura unânime; com apenas um dos dois algarismos gera-se uma discussão irresolúvel.
E, como se percebe, o sessenta e nove é um dos poucos casos – senão mesmo o único – que tem um tipo de fonte – um tipo de tipo de letra – indicado; é aquele no qual o seis e o nove são iguais – são iguais na forma, dizem o mesmo. Times New Roman, por exemplo.
Isto é, o que interessa é que, no sessenta e nove, se lê o mesmo dos dois lados; não se trata de um palíndromo, capicua, anagrama ou qualquer coisa do género; tanto quanto sei, esta anomalia não tem nome próprio.
O sessenta e nove é o esperanto, a língua franca, a língua comum da linguagem escrita.
O sessenta e nove é literal, embora seja um número.
Embora o verso seja sempre o inverso; o forro, o oposto.
Versátil – o que contém a capacidade do verso; diversão é escolher outro caminho.
«Versura: termo latino que designa o lugar em que o arado dá a volta no fim do campo. Existe um paralelismo com alguns sistemas de escrita antigos, nos quais as linhas correm alternadamente da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como acontecia na escrita grega antiga, na hitita ou também na escrita rúnica. Este tipo de escrita é geralmente designado escrita bustrofédica (do grego bustrophedon: o modo de virar os bois).» (G. Agamben, Ideia da Prosa)
...la forma es una parte fundamental del contenido de la forma es una parte...
Um loop evolui e revolve, mas não sai de um mesmo sítio; não tem princípio nem fim porque não tem exterior, logo não pode sair.
O infinito não é algo sem fim, é algo que não tem nem interior nem exterior.
Tão infinito como o fio de mel.
Mas a cada volta talvez não seja bem a mesma coisa; como numa mise en abyme – os dois espelhos paralelos, frente a frente, cada repetição inclui a anterior, sucessivamente, numa sofreguidão total, sem descanso, sem se saciar, até à invisibilidade distante; não se vê mas está lá.
Pergunto-me – porque não também pensar no noventa e seis; será que se pensou no sessenta e nove por vir primeiro? Mas, precisamente, a questão da reversibilidade perfeita, deveria obviar a questão ordinária. O sessenta e nove obviar a questão ordinária; talvez não.
«‘[O]rdem’, palavra por sinal sagaz que incorpora, a um só tempo, a insuportável voz de comando e o presumível lugar das coisas.» (R. Nassar, Um Copo de Cólera)
«A desordem é a sensibilidade da limitação. Diz Bertolt Brecht que existe ordem onde não há mais nada. ‘A ordem é um fenómeno da escassez’ – acrescenta.» (A. Bessa Luís, Conversações com Dimitri e Outras Fantasias)
Perverter é perturbar a ordem ou o estado das coisas; desordenar.
Perversão é usar algo de um modo, à partida, não previsto. Neste sentido, a perversão pode ser entendida como uma faceta da liberdade. Este tipo de liberalidade no uso das coisas acontece quando nos sentamos nos degraus de umas escadas – feitas para subir e descer –, ou quando rebobinávamos as cassetes com a hexagonalidade do lápis, ou quando se fecha um pacote de bolachas com a mola da roupa.
Há que perverter o previsto – esta é a lógica da liberdade.
Desodorizar o incenso.
Desorizontalizar os líquidos.
Comer a tosta com o doce virado para baixo.
Mastigar a mousse, engolir a pastilha intacta.
Jogar o jogo do galo no recinto do sudoku.
Pesar uma balança.
No sessenta e nove, o significante parece corresponder exactamente ao significado; é como a onomatopeia; o sessenta e nove é a onomatopeia do sexo.
«Com perdão da palavra, quero cair na vida./ Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde…/ Assim escrevo: tarde. Não a palavra./ A coisa.» (A. Prado, O alfabeto no parque)
As palavras são como luvas que cobrem as coisas. (a partir de V. Luiselli)
Mas não é bem o significante, é a forma do significante; é como se víssemos o número (ou a palavra) mas não o lêssemos.
Se o poder do sessenta e nove é o da reversibilidade perfeita e da igualdade horizontal, há que ter atenção – uma dupla atenção –, dado que se trata de um caso de divisão da atenção. O sessenta e nove é um problema da simultaneidade; e esta é também a sua riqueza. Uma inescapável divisão da atenção.
Esta divisão da atenção não quer dizer fazer contas entre o dar e o receber, entre o que se sente e o que se oferece a sentir; o objectivo é mesmo diluir estas diferenças, sentidos, ser tudo a mesma coisa, não haver possibilidade de discernir.
Discernir quer dizer diferenciar, isolar, criar distância entre, definir – reconhecer ou criar um limite, onde uma coisa acaba e começa a outra; voltamos a Möbius.
A questão da divisão da atenção é o que torna o sessenta e nove único.
We? Oui!
Quando digo isto, isso, aquilo, digo algo que se está a distanciar; mas não só; isto, isso, aquilo fazem presumir uma convivência, uma co-presença, coincidência; quer dizer, estas palavras fazem presumir dois interlocutores num mesmo espaço. Eu digo isto que tenho na mão, isso que tens na mão, aquilo para onde aponto; eu digo isto porque tu estás aqui para ver isto, isso porque eu estou aqui para ver isso, aquilo porque ambos o vemos ao longe. É um pouco como eu e tu; eu só digo eu quando tu estás aqui; tu só dizes tu quando eu estou aqui; ou, digamos, quando se presumem as presenças, como eu agora, aqui, sozinho, a escrever eu, mas presumindo-te.
Os olhos estão do lado da ferida (volte-se ao Banquete de Platão e ao discurso de Aristófanes), estamos virados para a parte que nos falta.
«Porque eu vivia, quando abro os braços, dentro e fora. E quando ponho as mãos nos joelhos, só dentro. E quando ponho as mãos debaixo dos pés, já lá fora.» (B. Strauss, Fragmentos da Incompreensão)
«‘Eu’ é um mero eco daquele meu rosto no outro lado do espelho.» (V. Luiselli, Sidewalks)
«Abriu a palma da mão que era ossuda. Não havia nada na mão. Estava vazia. Foi só então que notei que sempre a tinha mantido fechada. Disse, olhando-me com firmeza: – Podes tocá-lo. Já com algum receio pus a ponta dos dedos sobre a palma. Senti uma coisa fria e vi um brilho. A mão fechou-se bruscamente. Não disse nada. O outro continuou com paciência como se falasse para uma criança: – É o disco de Ódin. Tem só um lado. Na terra não há outra coisa que tenha só um lado.» (J. L. Borges, O Livro de Areia)
No sessenta e nove parece não haver réstia de espaço pessoal; os corpos são indiscerníveis – onde acaba um e começa o outro; infinito, mais uma vez, sem limite, sem fora; apenas dentro.
Serão mesmo sessenta e nove?
No sessenta e nove não existem diferenças de poder – ninguém conduz a acção porque não há apenas uma – há sempre, no mínimo, duas a decorrer simultaneamente; os dois são, por assim dizer, condutores e passageiros.
Passageiro: que é conduzido, que não dura.
O espectador não é aquele que não participa ou não age, é aquele que não possui; o paradigma da situação acontece no peep-show, no strip-tease, (no cinema); o espectador paga para apenas ver.
O inimigo da simultaneidade é a estupidez; mas também será o prazer e a dor; ainda mais a dor, dir-se-ia. A dor organiza tudo – o corpo, a vida, o mundo; a dor afunila tudo naquele ponto único de pressão – o dente podre, a unha encravada, a perna amputada, o amante que já lá não está.
O prazer funciona também assim – autocrático, proeminente, indiscutível. Daí a divisão da atenção, a que o sessenta e nove obriga, pôr em causa a lógica comum dos assuntos sexuais.
A dor e o prazer – mas mais a dor – representam um apagamento do mundo. A dor erige um muro entre o mundo e o corpo dorido – e o prazer entre o mundo e o corpo em êxtase. Dor e prazer – uma vedação.
Esta parece ser a posição mais democrática; a atenção dada por cada um ao que olha deve ser única e precisa – não há dúvidas, está mesmo ali à frente.
Liberdade mútua, porque tudo aqui é mútuo e simultâneo.
Uma relação, uma relação de qualquer tipo, uma relação amorosa, sexual, é sempre uma relação de poder – quem gosta menos é quem tem mais poder; quem precisa menos é mais contente, íntegro. O sessenta e nove parece interromper esta lógica.
A reversibilidade mais perfeita acontecerá com os corpos de lado e não um em cima do outro; porque esta posição parece ter mais a ver com o espírito da coisa; ou coisas. Não há hierarquias, quer dizer, cima e baixo.
O sessenta e nove significa, igualmente, uma dupla ligação – cada um liga-se duas vezes ao outro.
Aqui, estamos sempre com a cabeça ao contrário, ou como de pernas para o ar, ou como se a cabeça estivesse na direcção do chão, como numa queda, ainda que os dois sexos – iguais ou diferentes – não se toquem, estão bem longe um do outro, mais ou menos a meio corpo de distância.
Agora os amantes não se vêem, quer dizer, não se olham olhos nos olhos.
Se no beijo olha-se frente a frente, olhos nos olhos, quer dizer, vemos a mesma coisa (embora no outro), o mesmo tipo de coisa – olhos, cara, boca; aqui acontece o mesmo – vemos o mesmo tipo de coisa; precisamente.
O que haverá de mais apropriado a uma boca do que provar uma boca?
O que haverá de mais apropriado à pele do que tocar uma pele?
O que haverá de mais apropriado a um olho do que olhar um olho?
Entre a cara e a boca.
A dupla posição tem algo de fetal; e a posição fetal é um pouco como tentar encarar o próprio sexo.
Ambas as bocas estarão ocupadas, o que instaura uma mudez genérica no quadro; o sessenta e nove é a posição mais silenciosa.
No encontro entre os dois troncos, ficam as quatro perninhas de fora – duas para cada lado –, como um insecto.
Esta é também talvez a posição mais sexual; é que, embora os dois sexos não se toquem – meio corpo de distância entre eles –, é-lhes dedicada uma atenção próxima, em igual medida.
O sexo parece constituir uma espécie de acesso directo, não mediado por nada, ao interior do corpo; uma coisa de nervos e nervuras, electricidade, que vai da pele a não sei onde e se sente como na dor de dentes – sem se poder agarrar à dor como nos agarramos ao joelho depois da pancada na esquina da cama; é uma sensação sem sítio.
Coisas que dilatam o tempo: o tédio, a insónia; coisas que atrasam o tempo: a viscosidade da água; coisas que aceleram o tempo: o prazer.
Durante uma semana e tal, deitei-me a pensar no sessenta e nove, levantei-me a pensar no sessenta e nove, na rua, à mesa, com conhecidos ou estranhos, sempre com o sessenta e nove em mente; tudo era motivo, tudo servia de causa para voltar ao mesmo.
E estas notas foram todas escritas – praticamente todas – no meio da cidade – passeios, comboios, paragens de autocarro, Carris, Metro, etc. E ia escrevendo nota a nota, exactamente como aqui se lê.
A reversibilidade mais perfeita, completa, encaixada, acontece mais facilmente com dois sexos iguais ou diferentes? E se iguais, qual o sexo mais propenso a tal completude, a fim de que não resulte um resto inútil, inutilizado?
Por exemplo, imagine-se um sessenta e nove exclusivamente masculino – matéria da qual sei absolutamente nada –, o encaixe resultante parece mais fechado, estável, íntegro e uno; não parecem resultar vazios mas apenas completamentos e equilíbrio; mais íntegro?
Contente: que não necessita mais nada, não precisa conter mais; completo.
Dir-se-ia que neste caso se trata de algo com cabeça, tronco e membros.
O sessenta e nove não será a última posição, mas num Kama Sutra político será, sem dúvida, a primeira.
Penso agora na septuagésima.
O poder do sessenta e nove está na reversibilidade perfeita, sem resto, sem direito e avesso, vice e versa, um pouco como a fita de Möbius, sem interior nem exterior, cima e baixo, princípio e fim, sem ficar nada de fora.